domingo, dezembro 03, 2006

O Falsista do Saldanha

Quando eu era miúdo era demasiado tímido e envergonhado. Falava de soslaio para as pessoas e digamos que não era muito amigo de as olhar nos olhos. O meu pai discutia constantemente comigo para eu não ser assim, para me tornar mais desenvolto e sociável, para não permanecer eternamente encerrado numa concha... E foi assim que nasceu o drama de muitos e muitos transeuntes das ruas de Lisboa. Em criança, quando um estranho me abordava para perguntar as horas ou alguma indicação, eu soltava um guincho agudo e corria passeio acima espavorido como um esquilo. Mas graças às contendas com o meu pai eu sentia que tinha de mudar esta maneira hermética de ser. Afinal o que se pretendia era que eu fosse educado e maduro, que transpirasse civismo, que ajudasse o meu próximo como se de um familiar se tratasse. Mas, a verdade é que ainda hoje fico nervoso quando alguém me aborda na rua para perguntar uma direcção... não consigo raciocinar, a língua torna-se cortiça, abro a boca e balbucio: "- É sempre em frente...", fazendo o gesto respectivo com a mão. Normalmente costuma resultar, as pessoas agradecem-me sorridentes e eu sinto-me bem na ilusão de ter ajudado alguém a chegar ao seu destino. No entanto, a pouco e pouco, a consciência começa a consumir-me e, no fim, só resta o terrível arrependimento. Não o consigo evitar, não importa se sei ou não sei para onde o pobre cidadão se quer dirigir, se tem de apanhar transportes para lá chegar ou se está a cinco metros do local exacto e não sabe. Da minha boca e postura erecta só saem as palavras tremidas: "-É sempre em frente...", e depois com a mão o gesto respectivo. Quando não me encontro em Lisboa tudo é mais fácil, digo "- Não sou daqui, peço desculpa." e fica o assunto arrumado. Mas na capital há algo supraterreno que assume o controle do meu corpo, algo demasiado terrível e demoníaco para o conseguir explicar. Parece que já se fala de mim por aí, mas ninguém sabe ao certo quem eu sou. Tornei-me numa espécie de mito urbano: o Falsista do Saldanha, dizem eles. Alguém que engana as pessoas nas indicações e as obriga a faltarem a reuniões importantes, a gastarem mais dinheiro de gasolina, a perderem grandes negócios... o Falsista do Saldanha é portanto responsável pelo aumento do desemprego, subida constante do preço do petróleo, guerras pelo mundo fora, grande parte da carreira da Ana Malhoa, etc.
As autoridades estão perto de me descobrir... sei que o fim está próximo e que um dia destes serei capturado. Bem o mereço.

Sem comentários: